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TALASSEMIA NO AGRESTE

23% desse povoado pernambucano têm anemia rara

 

Capivara, um distrito de Frei Miguelinho, no Agreste pernambucano, nem existe no mapa. Mas chama atenção. No povoado, 23% dos moradores têm traço de talassemia, um tipo de anemia grave, rara e hereditária. No resto do estado, a incidência é de apenas 0,07%.

Fernando Sabino Gomes, 45, nasceu em Capivara. Ainda não tinha três anos quando precisou tomar a primeira transfusão de sangue por conta da anemia. Sua infância toda foi marcada por idas e vindas a médicos e ambulatórios. Passou pelo sistema de saúde de Surubim, Caruaru e Recife. Só aos dez, durante um internamento no Hospital Oswaldo Cruz, em Santo Amaro, centro do Recife, veio o diagnóstico: tinha talassemia, e do tipo mais séria: a beta.

Os pais, embora assustados com a doença desconhecida, contaram ao médico, Aderson Araújo, que outras três crianças no povoado tinham sintomas semelhantes. O hematologista foi até a comunidade que, na época, há 25 anos, tinha pouco mais de 400 moradores. Junto com dois estudantes de medicina, ele reuniu a população, fez palestra sobre a doença e conseguiu fazer o cadastro e a coleta de sangue de mais da metade dos capivarenses.

Os exames foram levados à Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope). O resultado surpreendeu e os levou a estudar a causa. “Descobrimos, por meio  dos registros da igreja, que apenas quatro famílias predominavam lá. Portanto, o casamento entre primos era comum, aumentando assim a transmissão do traço talassêmico.”

 

Na comunidade, que começou a se formar em 1730 por europeus de uma mesma família, os casamentos consanguíneos eram a regra. Apenas quatro sobrenomes constavam nos registros de batismo: Gomes, Sabino, Souza e Santos. “O passo seguinte após identificar quem tinha o traço talassêmico foi esclarecer que um casal que o possui gera filhos com a doença, em sua forma mais grave”, recorda o hematologista.

Além de evitar novos quadros, a intervenção médica foi essencial para a vida dos quatro pacientes talassêmicos de Capivara. Fernando, que passou a maior parte da infância com episódios de diarreia, icterícia e anemia constante, chegou a ter o baço retirado por erro médico. “Foi muito sofrimento diante do desconhecido. Tiraram um órgão meu por não saberem qual doença eu tinha”, lamenta. A retirada era comum quando a doença ainda não era muito conhecida pelos médicos.

Com Vilma Gomes, 34, prima de Fernando, o percurso até o diagnóstico também foi penoso. Os médicos chegaram a dizer a seus pais que “não havia mais o que fazer”. Ela tinha quadro semelhante ao de Fernando, mas agravado por uma febre contínua. “Lembro que ficava de cama, sem força para nada. Minha mãe vivia em médicos comigo. Surubim, Caruaru. Meu pai chegou a se conformar. A dizer que Deus deu e podia levar”, lembra.

 

DIFICULDADES

Os pacientes com a talassemia beta precisam de transfusão de sangue. Alguns uma vez por mês. Outros a cada oito dias. Fernando nem recorda há quanto tempo segue a rotina de ir mensalmente ao Hemope. Além disso, precisa tomar diariamente uma medicação (deferoxamina) para reduzir a quantidade de ferro no sangue.

Ele conta que já passou sete meses sem o remédio. “Estava faltando na Farmácia do Estado”, lamenta. Chegou a ter 11,5 mil gramas de ferro por litro de sangue, quando o normal é pouco mais de 40 gramas. “Foi uma fase difícil. Contraí o vírus da hepatite C em uma transfusão”, recorda. Ele estava com 23 anos. Ficou quase um mês internado e teve uma grave hemorragia.

Vilma também enfrenta dificuldades para conseguir o mesmo remédio. E precisa ingeri-lo cotidianamente. Muitas vezes não consegue na Farmácia do Estado e precisa comprar. A transfusão de sangue, recebe uma vez por mês no Recife. Sai da Capivara ainda de madrugada no ônibus que a Secretaria de Assistência Social da Prefeitura de Frei Miguelinho disponibiliza. Mas nem sempre foi assim. Há três anos, além de sacolejar na estrada de difícil acesso por mais de uma hora até encontrar asfalto, pagava a um toyoteiro para deixá-la no centro do Frei Miguelinho. E, de lá, passava mais duas horas e meia até chegar ao Recife.

Na capital, precisa passar três dias. No primeiro faz os exames, no seguinte tem consulta com o hematologista e, no terceiro, toma a transfusão. Fica em um abrigo próximo ao Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, nos Coelhos. De seis em seis meses precisa fazer uma “bateria” de exames. “Além da falta de remédios, também tenho essa dificuldade. Os exames não são fáceis de conseguir. Demoram. É difícil fazer um checape completo”, lamenta.

CONSEQUÊNCIAS

Segundo Merula Steagall, presidente da Associação Brasileira de Talassemia (Abrasta), a ausência do tratamento é grave em todas as fases. Mas na infância é crucial, pois retarda o crescimento, afeta o coração (pelo excesso de ferro no sangue), entre outras complicações. “Essa criança talassêmica vai chegar à fase adulta com mais problemas de saúde ocasionadas pela falta dos exames e medicações. E esse adulto certamente não terá uma vida normal”.

Merula expõe seu próprio caso. Até completar dois anos, adoecia com frequência e nenhum médico no país conseguia fechar o diagnóstico. Em viagem de férias com a família, na Grécia, teve a causa descoberta. Seus pais decidiram morar em Atenas para que pudesse se tratar. “Como a talassemia é comum lá, o tratamento já era avançado. Tive condição de me desenvolver normalmente. O que nunca teria se tivesse ficado aqui”, conta Merula, que voltou ao Brasil quando já era adolescente. “Ainda assim, era meu pai que identificava quando eu estava necessitando de transfusão. A doença ainda era pouco conhecida.”

Ela reclama, atualmente, da falta de atenção aos pacientes. A Abrasta recebe relatos sobre a falta do quelante (remédio usado para reduzir o ferro no sangue) e até de bolsas de sangue no Hemope. “Isso é muito grave. A associação ajuda, mandamos medicação para atender 20 pacientes por mês em Pernambuco. Mas sabemos que isso não é suficiente. São mais de 60 talassêmicos no estado.”

Em relação à queixa de falta de medicamento e insumos, a Secretaria Estadual de Saúde informou, em nota, que  a Farmácia de Pernambuco ”está abastecida do medicamento deferoxamina de 250 mg, com quantitativo suficiente para atender os pacientes durante seis meses”. Sobre a falta de bolsa de sangue para transfusão, o Hemope informou que está com o estoque normalizado. A Secretaria Estadual de Saúde (SES) reconheceu a demanda por exames especializados.

LIMITAÇÕES

Até 1980, os pacientes talassêmicos tinham uma taxa de sobrevida máxima de 20 anos. Hoje, segundo Aderson, estão dentro do padrão. Mas a doença segue impondo limitações a quem não foi tratado adequadamente na infância. Fernando recebe benefício (um salário mínimo, atuais R$ 937) desde que contraiu a hepatite C. Tenta levar a vida normal. Concluiu o Ensino Médio. Fez um curso técnico de gráfico. Mas não chegou a exercer a função por causa do ambiente tóxico das gráficas. A anemia faz com que seja mais fácil contrair infecções. “Na terceira semana após a transfusão, quando a hemoglobina baixa, já me sinto cansado”.

Vilma também recebe benefício. Não tem força física para trabalhar. E a falta de tratamento na infância lhe rendeu um retardo no crescimento e uma escoliose acentuada. Sente dores no corpo. E, três semana após a transfusão, já começa a se sentir sem ânimo. Mas conseguiu algo raro para uma mulher talassêmica: teve uma filha. “Minha maior felicidade. Olhar para o meu bebê, hoje com quatro anos, e vê-la saudável”, comemora.

 

CASAMENTOS CONSANGUÍNEOS

O isolamento de outros povoados, querer manter o “sangue puro”, preservar a herança. Os casamentos entre primos, como ocorreu em Capivara, têm registro histórico e eram realizados por algum ou por todos esses motivos. “Casamentos endogâmicos foram comuns na Europa, na Idade Média. Existiam como uma forma da nobreza não ter que partilhar sua herança com plebeus”, comenta Maria Ferreira, doutora em história e coordenadora de Cooperação e de Estudos da Escola de Inovação e Políticas Públicas da Fundaj.

Segundo os registros históricos, esse costume foi trazido ao Brasil pelos colonizadores, principalmente portugueses e espanhóis. E não só matrimônios entre primos, mas também de tios (as) com sobrinhas (os).  Em sua tese de doutorado, Maria Ferreira analisou as relações no século 19 e encontrou indícios de casamento entre parentes em Pernambuco. “Dados que vi em inventários de uniões entre primos e entre tios deixam bem evidente a preocupação em manter as terras na família. Era a preservação dos bens e da linhagem.”

Fonte: Site | Revista Nabuco

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